domingo, 7 de março de 2010

José Mindlin: Os livros ficam

Aos 95 anos, morre José Mindlin, o empresário e intelectual paulistano que se devotou a um empreendimento extraordinário: a formação da maior e mais relevante biblioteca privada do país, com 45 000 volumes
Bruno Meier

ESPÍRITO PÚBLICO Mindlin em sua biblioteca:
a parte dedicada ao Brasil foi doada à USP

Aos 13 anos, José Mindlin entrou num sebo de São Paulo e comprou seu primeiro livro: um exemplar do Discurso sobre a História Universal, volume datado de 1740 e escrito pelo bispo francês Jacob Bossuet. Aquele título seria a pedra inaugural de um empreendimento extraordinário. Ao longo dos mais de oitenta anos que ainda teria pela frente, Mindlin constituiu a maior e a mais relevante biblioteca privada do país. A coleção conta com 45.000 volumes. O bibliófilo, empresário e intelectual paulistano chegou a calcular quanto tempo precisaria para absorver todo o conhecimento contido neles: 300 anos. "Como não consegui encontrar a fórmula para viver tanto, resolvi me contentar com o tempo de que disponho – enquanto durar, eu vou aproveitando", declarou certa vez. Internado desde o mês passado em São Paulo em razão de uma pneumonia, Mindlin morreu na manhã do último domingo, aos 95 anos. Ele pode não ter tido tempo para dar conta da leitura de seus livros – mas realizou em vida seu maior sonho, que era garantir o acesso da posteridade a seus tesouros. Em 2006, depois de quinze anos de luta contra entraves burocráticos, Mindlin consumou a transferência da parte de seu acervo dedicada ao Brasil, com 25.000 volumes, para a Universidade de São Paulo. Costumava justificar sua generosidade com uma frase atribuída ao escocês Andrew Carnegie, o homem mais rico dos Estados Unidos no início do século XX: "Os homens passam, mas os livros ficam".
 
Filho de imigrantes judeus russos, Mindlin nasceu em São Paulo, em 1914. Foi do pai que herdou a paixão pela cultura e pela arte. Teve contato, desde cedo, com estudiosos e escritores, como Mário de Andrade. Paralelamente ao culto dos livros, desenvolveu uma trajetória profissional bem-sucedida. Aos 15 anos, iniciou sua carreira como jornalista no diário O Estado de S.Paulo. Mais tarde, cursaria direito na Universidade de São Paulo e faria cursos de extensão em Nova York. A atuação na advocacia foi o prelúdio de seu grande passo como empreendedor: a fundação da Metal Leve, fabricante de peças automotivas, em 1949. Mindlin fez dela um exemplo de empresa nacional moderna. A Metal Leve chegou a ter 7 000 funcionários e duas fábricas nos Estados Unidos. Em 1996, o empresário vendeu a companhia para a maior concorrente, a alemã Mahle – e passou a devotar-se em tempo integral à sua coleção.

"Tenho obsessão de ler e reunir livros. Um pouco patológica, mas mansa – porque não faz mal a ninguém e me faz sentir bem"

Mindlin também foi um homem público de atuação exemplar. Ainda nos tempos de O Estado de S.Paulo, desenvolveu uma tática para enfrentar a censura da Revolução de 1930: para confundir a escuta telefônica, passava instruções à sucursal carioca do jornal em inglês. Em 1975, com o país sob a ditadura militar, Mindlin assumiu a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo – e logo enfrentaria um duro golpe com a prisão e a morte nos porões da repressão de Vladimir Herzog, que ele próprio havia indicado para chefiar o jornalismo da TV Cultura. Irredutível em seus princípios, pediu demissão do cargo. "Mindlin foi uma grande figura como pessoa, intelectual e também, num certo momento, uma grande figura política, quando soube defender a liberdade de imprensa", declarou em seu velório o governador de São Paulo, José Serra. Em 2006, o empresário conquistaria outra deferência: foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras.

Na casa espaçosa em que moravam, Mindlin e sua mulher, Guita (falecida há quatro anos), cuidaram por seis décadas de sua coleção. Entre as raridades figuram a primeira edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões (de 1572), os originais de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (corrigidos pelo autor), e a primeira edição ilustrada dos Triunfos, de Petrarca, impressa em 1488 e seu livro mais antigo. No fim da vida, míope e vítima de uma deformação na retina, Mindlin já não conseguia se debruçar sobre as obras sozinho. Passou então a recorrer a amigos, universitários e empregados para fazerem isso por ele. "Tenho obsessão de ler e reunir livros. Um pouco patológica, mas mansa – porque não faz mal a ninguém e me faz sentir bem", dizia.

Fonte: Veja

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